Acordei cedo, ainda estava na cama quando desejei caminhar pelo deserto, como faz diariamente o escritor Amós Oz, apenas para captar as vozes. Diz ele que as vozes do deserto são pratos regalados para a sua escrita. Gostaria, mas eu não ouço as vozes do deserto, nunca as ouvi, mas procuro ouvir as vozes do vento, aprecio dias de ventania, pois o vento carrega com ele o som do primeiro dia da existência. Procuro ouvir aquele vento que pairou sobre as águas no momento da criação do mundo.
Aquele mesmo vento, após bilhões de anos, ainda ecoa sobre nós. O seu uivo, embora quase inaudível, é captado apenas pelos treinados a identificá-lo. Nem é preciso ter bom ouvido, basta ter capacidade suficiente para separá-lo do barulho infernal produzido pelo ser humano. Desde pequeno aprendi a ouvir a voz do vento, quando criança passava horas admirando o balançar das espigas do trigo e captando o ruach criador. Diz o texto sagrado que, após a criação do mundo, o vento do Senhor pairava sobre as águas; é este o vento que me inspira a escrever.
Não é sempre que a minha lua está na casa três, mas creio que tenha sido predestinado a escrever, ao menos a contar algumas histórias. Quando não posso dizê-las, eu as escrevo; mas também não é fácil escrevê-las na forma que deveriam ser ditas. Primeiro, eu rascunho as idéias, depois, eu mastigo com o olhar cada palavra colocada, seja no papel, no computador ou mesmo na memória.
Sinto que as palavras também mastigam o meu olhar; com o olhar mastigado, extraio das idéias rascunhadas a forma que desejo escrever para contar a minha história, o meu segredo, o meu rastro de existência ou ao menos a sombra do meu olhar sobre o mundo.
Tenho comigo que de uma única palavra dita, por quem quer que seja, poder-se-á movimentar um turbilhão de idéias. Creio que se trata da força do vento criador, aquele mesmo vento, que procuro distinguir nos dias de ventania. Adoro os dias de agosto, pois venta muito. Ouvir o vento é tão importante quanto mastigar as palavras com o olhar.
No leito de um centro cirúrgico, a enfermeira teve dificuldades em apanhar uma determinada veia do Ignácio Loyola Brandão, acometido por um aneurisma cerebral; ela lhe disse que estava diante de uma veia bailarina, pois sua veia dançava sob sua pele fugindo da agulha. Desta simples expressão, fez dela um livro. Mas a veia bailarina tratada no livro não é a veia fugidia, mas aquela que dançava em seu cérebro prestes a explodir feito uma bomba relógio. Bem mastigada a expressão, deu sentido à reflexão que trouxe em seu livro.
Como no exemplo da veia bailarina, cada palavra depois de mastigada traduz a realidade do autor, da sua verdade, do seu mundo. Toda palavra dita é sagrada; merece ser reverenciada, mesmo que por um olhar mastigado, pois por detrás das palavras existe um mundo real, um mundo imaginário, um mundo futuro e um mundo que iniciou há bilhões de anos pela força do vento criador, aquele que pairou sobre as águas e que eu procuro ouvir seu eco para escrever minha história.
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Danilo Henrique · 2 de abril de 2021 at 15:46
Gostei da maneira como escreve. Parabéns!