Carrego comigo a lembrança do meu pai, José Terra, sempre lendo. Embora nunca tivesse freqüentado uma escola, lia todo e qualquer jornal que caia à sua frente. Um velho livro ou pedaço de jornal, tudo era objeto de leitura. O embrulho do açougue era sempre guardado para que fosse lido e relido.

Toda vez que da roça ia para a cidade, caso tivesse algum trocado, ele comprava o jornal do dia. Quando não tinha, ele não se envergonhava, pedia um exemplar velho, mesmo que fosse de dias anteriores. Sempre trazia um jornal, e passava horas lendo e relendo. Desde criança assistia sempre a esta mesma cena, repetitiva e incansável. Ele não apenas se contentava em ler, comentava com mamãe as notícias e as opiniões dos jornalistas.

Foi com ele que aprendi a ler e a escrever. Ele acompanhou-me no aprendizado através da cartilha “Caminho Suave”. Pequeninho, eu queria ser como meu pai, saber ler, para ler os jornais e entender o que estava acontecendo no mundo, no mundo que eu imaginava existir além do sitio da Onça Pintada [onde nasci e cresci]. Antes mesmo dos meus seis anos, eu já sabia ler e a escrever [meu primeiro dia de aula foi uma decepção: o professor nos ensinou a fazer traços verticais, horizontais e diagonais].

Ficava emocionado com a leitura da poesia de Camões na primeira página do Estadão. Pouco entendia e nem sabia que, por traz daqueles versos decassílabos haviam textos censurados, histórias que a ditadura militar decidira que eu não deveria saber.

Meu pai lia diariamente a Bíblia, conhecia cada livro, cada capítulo e cada versículo. Ai do missionário que ousasse a lhe fazer proselitismo se dava mal, pois tinha que checar cada palavra dita ou mal interpretada. Adorava as histórias contadas por meu pai, eu imaginava cada cena: desde a velhice de Matusalém, dos homens gigantes da Cananéia, do sacrifício de Isaac até a venda de José aos mercadores egípcios.

Li várias vezes, a História Sagrada, um livro grosso que meu pai ganhou de um caixeiro viajante; fiquei impressionado com as peripécias do Rei Davi e seus filhos. Chocou-me a morte de Absalão, que morreu porque suas tranças enroscaram nos galhos de uma árvore quando, em disparada, debaixo passava a cavalo. À época, conclui que a razão estava no assassinato de seu irmão, por vingança ao estupro de Tamar, mas eu não sabia e ninguém me explicava o que seria o tal estupro.

Não bastassem as leituras, ouvia rádio. A partir das seis da matina, meu pai sintonizava as ondas curtas, que traziam o trabuco de Vicente Leporacce e o pulo do gato do José Paulo de Andrade. Aquilo que lia nos jornais tinha alguma referência ao que ouvia no rádio. Fazia algum sentido. Embora não entendia exatamente o que acontecia no mundo, queria entendê-lo.

Nem havia completado dez anos e já trabalhava na roça de arroz, milho ou algodão. Era natural manejar a enxada ou passar carpideira de tração animal. Mesmo pequeno, embora fraco, meio raquítico, tinha a destreza suficiente até para escapar do serviço, se esconder debaixo de uma árvore e ler um livro. Papai nunca moveu um músculo contra tal atitude, achava que ele até gostava, pois me fornecia livros. Certa vez apareceu em casa com alguns livros que comprara num sebo em Paraguaçu Paulista, entre eles “Seis Estudos de Piaget”, talvez tenha comprado porque achou barato, interessante e porque tinha duas crianças brincando com uma bicicleta na capa. Falo sério, juro que eu li e não entendi absolutamente nada. No entanto, quando na faculdade, me foi indicado à leitura de Jean Piaget, por sorte ainda tinha e tenho aquele velho livro comprado num sebo por papai.

Depois que fui para o colégio interno lá em Marília, eu não estudava as lições das aulas regulares do Colégio Cristo Rei. Odiava repetir aquela decoreba toda. Eu aproveitava o tempo no salão de estudos para ler, eu lia qualquer coisa, da enciclopédia Barsa aos livros da coleção brasiliana. Sempre acreditei que a leitura me dava sorte na hora das provas; difundia esta minha versão aos colegas, que não acreditavam na minha mandinga. Eu afirmava que bastava colocar o caderno debaixo de travesseiro, enquanto dormia o conhecimento adentrava ao meu cérebro por osmose. Tinha quem acreditasse.

Nas aulas, eu sempre tinha um exemplo para dizer aos professores, tinha indagações e conseguia compreender as lições dadas em aula, por isso não precisava estudar; e conseguia esta proeza porque não estudava, eu lia. Até hoje mantenho a mesma sorte. A leitura me dá sorte: eu lhe garanto.


Henrique Chagas

Henrique Chagas, palestrante, instrutor, mediador de conhecimentos, escritor, advogado e gestor na área jurídica. Cursou pós-graduação em Direito Civil e Direito Processual Civil e fez MBA em Direito Empresarial pela FGV. Leia mais em "Sobre Mim".

2 Comments

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