Tinha dezessete anos quando li o livro proibido de Renato Tapajós. Eram dias perigosos aqueles: qualquer movimento, mesmo em câmara lenta, qualquer fala acima do tom, qualquer estranho rabisco poderia ser considerado ato subversivo ou revolucionário, com poderes capazes de derrubar o regime. Renato Tapajós foi preso porque escreveu um livro com técnica, tempo, ritmos e forma cinematográfica, denunciando o emprego brutal da tortura pelos militares.
Li o livro como se fosse um filme, mas sequer pretendia fosse um roteiro. Fiquei impressionado com a narrativa das cenas em câmara lenta. Inúmeras vezes, até hoje, me pego imaginando todos os movimentos de Lúcia, ao parar no sinal, no cruzamento da Avenida Afonso Pena com a Rua Bahia. Ah! O romance não se ambienta em Belo Horizonte, apenas minha imaginação insiste em vagar por aquelas ruas.
Ênio Silveira, que recusou a publicar o livro, tinha total razão, o livro mantem uma carga simbólica enorme, não foi por menos que a censura mostrou suas garras, prendeu o autor e os donos da editora. “Câmara lenta” despertou no humilde estudante, que fui, o desejo vulcânico de mudar o mundo, sem armas, apenas com palavras, com letras e rimas, mesmo que tivesse a se submeter às atrozes conseqüências advindas do regime.
Não tinha dezoito anos, já exercia uma militância, uma militância simbólica, mas nada inconseqüente [paguei à época um alto preço]. Simbólica ao ponto de me achar alienado, não curtia um baseado, detestava o cheiro. Enquanto a vida explodia por todas as fendas da cidade, inebriava-me com a poesia de Ana Cristina. Rabiscava então poemas fundados em meras exposições, perdendo-se na profusão das coisas acontecidas, que não tinham aquela beleza poética jubilosa com as frases bem compostas do poema sujo de Ferreira Gullar. Poemas que eu publiquei em edições alternativas, impressas em mimeógrafos, que eram repassados de mão em mão ou vendidos nas esquinas, nos becos ou botecos ao preço da generosidade de quem os comprava.
Queria mudar o mundo com uma poesia diferente, com palavras transformadoras, que alterassem o rumo das coisas. Fui conseqüente e engajado [era um jargão da época], mas os meus textos não deram sobrevida ao meu futuro, o mundo mudou com ou sem eles. Com o afrouxamento do regime, eu me enveredei em busca de uma profissão, estudei filosofia, psicologia e advocacia ao tempo que trabalhava para o meu sustento. O trabalho colocou um cabresto na minha imaginação criativa; não por muito tempo, apenas até o dia que descobri que a lua estava na casa três do meu zodíaco.
Já com quase quarenta anos, um astrólogo, em Brasília, fez meu mapa. Com assombro, disse-me, “Senhor, a lua está na casa três“. “E agora? O que isto significa?” Respondeu-me, com aquela cara de mago, meio padre meio Paulo Coelho, “escreva, você é um grande escritor“. “Como assim?” “Escreva e verás“. Descobri naquele dia que também podia ser mago, vidente, profeta ou qualquer coisa.
Nunca acreditei em astrologia, horóscopo ou outra coisa que o valha, mas depois que fiquei sabendo que tenho a lua na casa três, que sou capricorniano com ascendente em Áries, recomecei a escrever, de forma e ritmos diferentes. As cicatrizes daquele tempo continuam expostas, e sequer espero ser indenizado. Entretanto, hoje tenho liberdade para pensar, escrever e ser o que bem entender. E meus leitores, por certo, não esperam mais aquela mesma metáfora. Talvez, a lua sequer esteja agora na casa três, até Plutão deixou de ser um planeta!
No entanto, a indignação continua a mesma; e preservo para todo o sempre, na memória, em câmara lenta, todos os movimentos de Lúcia, que, na esquina da Avenida Afonso Pena com Rua Bahia, não se entregou covardemente aos seus algozes.
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“Lua na casa três“, de Henrique Chagas, foi também publicado na FOLHA DE BLUMENAU na edição 188, no dia 23-07-2008. Veja aqui.
1 Comment
Cursos Com Certificado · 23 de abril de 2021 at 21:03
Aqui é a Carla Da Silva, gostei muito do seu artigo tem
muito conteúdo de valor parabéns nota 10 gostei muito.